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sábado, 3 de setembro de 2011

O navio branqueiro

Senhor Deus dos desgraçados!
Respondei-me vós, Senhor Deus:
quantos bois são necessários
para embranquecer o açúcar
que adoça meu café
nessa manhã em Jardim da Penha?

Pra quê tanta carnificina?
Porque não gostamos da aparência do que é escuro
(é bobagem falar em racismo aqui e agora?)
clareamos o açúcar que adoça nossa boca
com ossos de bois moídos
- e fodam-se os bois
que doaram sua vida, sua carne e até seus ossos
pra alimentar o doce racismo nosso!

Gados! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei as várzeas, tufão!...

Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a várzea à pressa se alaga
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os bois que pastam nos campos
ou talvez só se alimentem de ração!
São castrados - uma violência a mais!
E os alimentam para que tenham uma carne tenra e saborosa
que será vendida no açougue.
Sua pele virará o couro
de que é feito as bolsas, cintos, sapatos e demais acessórios
de homens e mulheres.
E, como tudo tem que dar lucro,
vendem até os ossos,
que serão moídos e embranquecerão
o doce açúcar do Gullar em Ipanema.

Mas são reles bois - dirá o especista / humanocêntrico.

Podem eles sofrer? Podem eles não terem o logos? Podem eles não poder?

Hoje tomei duas xícaras de café sem açúcar nem adoçante -
não estava a fim de comer pó de osso de inocentes e dóceis vítimas.
O café ficou indigesto.
Mas minha consciência ficou limpa.
Cedo, cedo, muito cedo mesmo, senti sono - será a falta do açúcar?
Vou descobrir como me manter numa vigília digna desse nome o dia todo
- e sem comer açúcar!

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