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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

poema cinza

pele por pele
a gente vai
descamando.
gota a gota
a gente vai
desmamando.
e ainda não inventaram nenhum antídoto
para o veneno ácido do amor
que escorre feito um caldo cálido da maçã
sabendo ao sumo insaciável do sujo suco.

expelimo-nos a nós mesmos
gota a gota.
a areia escorre
grão a grão.

e ingerimos cada farelo do pão
que o diabo amassou
depois que caiu do céu.

jogue a pá de cal
nesse sentimento com mofo.

lápis a lápis
eu retiro do estojo
e faço um arco-íris
da escala de cinza:
preto,
preto menos um,
preto menos dois
e assim por diante
feito uma gradação
monótona
e
inútil.

mas a cor já foi furtada
e seu rapto
é inepto
pois cada cor é uma secção do visível
que pinçamos uma a uma e depois as misturamos numa tela:
verde
roxo
amarelo
e misturamos até formar um caldo cinza
amálgama da pastosa tinta
resquício da paisagem extinta
gravetos quebrados na quina da floresta
restos amenos de faces cansadas
com olheiras escorrendo até o queixo
pincéis descabelados
e tudo fora do eixo
espirais aspirando a reta curva
dos lençóis que não se amassam
áspera pera tecida em cada areia branca
garranchos rupestres inscritos no vento
sofrimento uterino feito um vácuo indeciso.

cisco a cisco
eu arrisco.
letra a letra
eu posto.

a pólvora de cada fósforo
a impotência do lusco-fusco
a criança assustada no escuro
pedra a pedra:
o muro:

entre duas alemanhas
o muro
um muro de chumbo
muro
inquebrantável
insensível ao veludo da manha
incorruptível às sutis artimanhas
inoxidável como ouro
surdo a qualquer desaforo

um muro-deus,
um muro
que se desdobra em murros
e se estende até o morro
feito uma modorra inóspita
feito aqueles que cercam os hospícios
(barreira sanitária: o muro-nojo)
a náusea, o entojo
o caramujo:

as teclas do piano são um arco-íris que se esqueceram de colorir
e nelas afundo os dedos até sorrir
um sorriso triste como se eu estivesse descalço
e do musgo dos meus dentes brilhando com a saliva
você vê brotar um bolor mais áspero
e me espera me dando as costas:

a rosa
folha por folha
já está murcha
como murcha
deveria estar

e as gengivas já estão ressecadas
e o céu de hoje em diante para sempre estará nublado

Um comentário:

J.M. de Castro disse...

Cinza é a sua cor e o seu momento. A indefinição no cinza é o que me atrai, o que te atrai, nós unidos. Pode ser tudo como pode ser também uma catástrofe. Em cada verso seu você aponta para isso. E claro, o cinza sempre puxa para baixo, para a densidade mais sombria, quase escuridão. Mas é, ainda, o indeterminado que, num rompante, pode tornar-se branco. Você é isso, é cinza, é o que você escreve.

E novamente digo que gostaria de ouvir você recitando os seus poemas. Eles têm uma musicalidade próprio que não alcanço.