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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O mau-humor no campo de centeio

As coisas ou são uma droga ou são uma merda. Eis como pensa Holden Caulfield, o narrador do romance O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. A revolta e o ódio como filosofias de vida.

Caulfield não tem muito vocabulário. Usa sempre como advérbio as locuções "pra burro" e "pra chuchu" (obviamente, assim é como foi traduzido, mas - também obviamente - o tradutor deve ter mantido a pobreza vocabular do original). Caulfield não tem tanto Q.I. quanto Luce, que estudou com ele num dos colégios por que passou. Mas tem o mínimo de inteligência para perceber que todos ao seu redor são um bando de idiotas. Uma sociedade ególatra na qual "o dinheiro fala". E por isso Holden está sempre afundado na própria solidão. As relações com as outras pessoas são sempre superficiais e não o retiram de seu mau-humor solitário. E, por isso, a história de Holden Caulfield é a história de cada um de nós. Podemos nos relacionar com quem quer que seja, ser filhos de alguém importante, mas sempre temos que nos resolver sozinhos, individualmente. "Cada um por si, e Deus contra todos", diz a música dos Titãs.

Na teia de relações que é o mundo, uma individualidade roça outra individualidade, mas só na superfície, e continua indivisível. Somos uma multidão de autistas nos tateando e sentindo esse ponto mínimo de contato que só nos faz retornar ao nosso próprio cosmo interior.

Luce, talvez a única personagem de bom senso que aparece no romance - além de Phoebe e as outras crianças e o professor Antolini, apesar de suas possíveis segundas intenções - fala em filosofia oriental. O que é uma possível saída do labirinto do nosso microcosmo para o macrocosmo - onde talvez cada alma possa realmente beber da outra, através da transcendência. E Luce o fala ao falar de sexo. Caulfield mal o entende. Gagueja perguntas inocentes. Caulfield, para quem todos são idiotas e cretinos - até o Luce, com seu Q.I. alto, enchia seu saco - e que quer tanto saber para onde os patos de um laguinho do Central Park vão no inverno - como se a resposta a essa pergunta banal contivesse a senha para a sua felicidade, como se a formulação dessa pergunta, ao supostamente afastá-lo de suas questões existenciais, justamente as condensasse.

Em O apanhador no campo de centeio, o mundo adulto - o qual o narrador mal adentra, com seus dezesseis anos - é cretino e superficial, e as crianças ainda não foram corrompidas. Uma criança, ignorada pelos pais, cantando "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio" é talvez a única coisa bela de uma tarde de Holden Caulfield, que no entanto - é bom ressaltar nos dias de hoje - não é pedófilo. Ele apenas está se despedindo da própria infância e vendo com olhos realistas a cretinice da vida adulta.

Para Holden, seus irmãos - o falecido Allie, Phoebe e D.B. - não são tão cretinos (com exceção de D.B., o escritor que odiava o exército mas gostava de livros de guerra e acabou se prostituindo para Hollywood) como o resto do mundo, o que diz muito sobre um sujeito egoísta como Holden - egoísta ou isolado pela cretinice alheia?

Richard Dawkins, em O gene egoísta, diz que os seres humanos são controlados por seus genes que, remanescentes de uma luta competitiva pela sobrevivência - desde o "caldo primordial" -, são compartilhados pela metade por seus irmãos de sangue (isso explica o afeto hierarquicamente superior que dedicamos aos entes da nossa família, em relação aos outros, mesmo parentes mais distantes, com quem compartilhamos menos da metade de nossos genes - daí os tios e primos e até o avô de Holden serem todos imbecis). Mas o egoísmo não é privilégio do fictício Holden Caulfield. Para Dawkins, é característica de todos nós, seres vivos. Dawkins diz que nossos genes são egoístas mas que, entretanto, o altruísmo pode ser ensinado - entre os seres humanos, que assim contrariariam seus genes.

E, se ensinássemos - se evitássemos que as crianças caíssem no abismo - e, principalmente, se aprendêssemos a ser altruístas, não seríamos menos cretinos?

*         *         *

Talvez não seja ruim não ter um Q.I. tão alto se você saiba dançar bem. Ou talvez seja até melhor assim. E Holden Caulfield era um ótimo dançarino e se divertia à beça quando dançava. Talvez os únicos momentos em que a personagem principal se diverte no romance - apesar do mau-humor de Holden com a burrice de Bernice, também ótima dançarina - sejam mesmo quando ele dança justamente com Bernice e com Phoebe. E aí podemos traçar uma relação de O apanhador no campo de centeio com outro romance, O lobo da estepe, de Hermann Hesse. Nesse romance, Hermínia afinal convence Harry Haller de que ele deveria dançar e ele, que era um intelectual que vivia isolado do mundo, quando começa a dançar vê que nunca tinha se divertido na vida. É a trajetória que Hermínia queria que Harry cruzasse, deixando de ser apenas o intelectual para permitir ao seu corpo também inscrever sua grafia no mundo, se é que podemos chamar de grafia uma linguagem efêmera e não-verbal como a dança, essa grafia ágrafa.

2 comentários:

Luis Eustáquio Soares disse...

bela resenha, coralina coral, de novos atos nascentes. me faz lembrar um coro órfico que assim diz:"saber seu não saber é um novo saber".
beijos
de la mancha

J.M. de Castro disse...

Oi Leninha, bela leitura. A essência do Houlden ta aí. Uma ótima introdução para quem ainda não leu. E um ótimo deleite para todos aqueles que leram.

Gostei da relação com o Lobo da estepe.