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domingo, 4 de julho de 2010

Jogo de xadrez



Meus cabelos não enganam tão bem, mas já que a cor de minha pele (a maioria concorda que eu sou branca, embora já tenham me definido como "amarela") é por demais etnocêntrica, talvez simplesmente por isso, por eu ser branca, sou uma criminosa, nesse mundo em que a guerra está declarada e que não por acaso as peças do jogo de xadrez são brancas e pretas (ou pretas e brancas, se é que a ordem de citação também não indica um etnocentrismo de minha parte).

Talvez realmente eu seja culpada por meus genes serem tão eurocêntricos e terem selecionado essa cor, já que meu avô, enquanto estava lúcido, insistia em nossa descendência afro, que pode ser que tenham intencionalmente riscado do mapa. A ascendência indígena pelo menos deixou rastros mais facilmente identificáveis: na casa dos meus avós há uma foto da mãe do meu avô: uma perfeita índia. E minha tia e minha prima e meu irmão têm traços de índios. Mas uma outra prima tem cabelos ainda mais afros que os meus, confirmando o que meu avô sempre afirmou. Claro que essa minha prima pode ter herdado seus cabelos afro do outro polo de sua árvore genealógica, mas acredito no meu avô, que agora já não está mais lúcido, já nem posso perguntar quem era o tal antepassado negro, mas talvez nem ele soubesse, senão teria dito à minha avó, que também não sabe dizer quem foi.

Mas como eu dizia, embora eu seja assim, vira-lata na essência genética, talvez eu seja culpada por ser branca na aparência (fenótipo), com essa cara de "francesinha" que já me acusaram ter. Afinal, segundo os kardecistas, algumas pessoas têm o privilégio de escolher, antes de nascer, como será seu corpo físico. Nesse caso a responsabilidade seria inteiramente minha, escolhendo os genitores mais adequados para tecerem meu conjunto de células.

E, no jogo de xadrez, não foi previsto o meio-termo: o rei branco come a rainha negra, mas desse estupro não nasce ninguém.



E a guerra está declarada e milhões de jogos de xadrez são jogados pelo mundo afora (mundo no qual uma elite branca dita as regras e detém a parte mais significativa do poder econômico, mundo no qual o continente europeu bebeu na  fonte de conhecimentos da África - e não só do Egito que eles nos fazem acreditar que é branco - e depois espalha a mentira de que o mérito é todo seu, ou, quando reconhece que foi influenciada, "se parabeniza por ser tão cosmopolita"), e o quê fazer com o resquício da guerra, digo, os filhos miscigenados gerados dos estupros (considerando, como diz Derrida, que num relacionamento erótico a figura do estupro nunca é totalmente apagada, e que há o que se convenciona chamar de estupro e todos aceitam que assim o é, e há as situações em que tudo é mais sutil)? Como as peças serão reposicionadas num mundo que insiste em somente permanecer entre dois polos? E no qual somos julgados pela nossa cor sem se considerarem nossa árvore geneálogica - que alguns se esforçaram por rasurar, mas cuja rasura não nos diz respeito -?

Se passo a me definir como "negra", vão me acusar de estar visando alguma cota em algum lugar, além de estar negando meu antepassado índio e - tenho que assumi-lo - europeu.

Os cães, na escala do cinza, são mais perspicazes que os humanos para perceberem nuances. Talvez os cães, se projetassem jogos de xadrez, criassem mais de dois exércitos.

Na Índia, os que nascem dos relacionamentos entre duas castas distintas são os impuros, que contaminam tudo o que tocam com sua impureza e portanto ficam seccionados do restante da sociedade, e também são os únicos a quem é permitido comer de tudo, ou seja, não sofrem nenhuma restrição alimentar. O que não é considerado privilégio, mas ignomínia. São tão impuros que nada os degradaria mais, nem mesmo comer carne de vaca.

Talvez eu esteja condenada a viver na mesma marginalidade, na fronteira entre dois polos que se odeiam. Posso me refestelar com o banquete completo, se tiver acesso a ele, mas para isso tenho que sobreviver às balas que são atiradas dos dois lados.

Essa é a situação não só dos mestiços, mas da classe média mesma: amortecedora de impactos, papel que ela cumpre muito bem, ao enganar os pobres se fazendo de rica e satisfazer aos ricos trabalhando para eles como os pobres que realmente são.

Talvez por isso nos odeiem com razão, e nos declarem guerra!

Ficamos na corda bamba e damos um nó na corda, ao invés de nos decidirmos por suas extremidades.

Problema que provavelmente não durará muito: a classe média está cada vez mais desfalcada. A questão é que ela não perde a pose. Continua fazendo seu papel de fachada. A fachada está toda esburacada, mas ela tampa os buracos com pasta de dente, pinta de dourado e fala que é ouro. Alguns acreditam piamente que é ouro. Outros odeiam nossa hipocrisia dourada!

3 comentários:

J.M. de Castro disse...

É, a crítica é sagaz e nos aponta preconceitos que já esquecemos mas que estão enraizados nas nossas ações. Nas pequenas ações é que o enraizamento é maior.
Sim, um mundo bipolar que nasce, talvez, com a racionalidade ocidental. E é duro habitar esse mundo em que se É ou NÃO É, infinito de estereótipos. A nossa vontade de nomear e classificar...e nessa mania humana, demasiada humana, aqueles que enfrentam a dificuldade de não querer ser nem preto nem branco sofrem de males da civilização. Talvez essa "doença da bipolaridade" seja também uma vertente de uma outra bipoliradade mais profunda que é fruto da nossa "civilidade". Cada civilização produz a sua própria barabárie, a sua própria doença, como espelho do seu próprio modo de ser...e estamos longe de nos curarmos...nós, os cinzas, só podemos viver na margem...ainda que Cinza já seja uma outra forma de bipolaridade...

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, querida coral, que o jogo de máscaras é onipresente na pós-modernidade, basta ver o caso obama. é óbvio, que, como negro, não tem nada a ver com os negros americanos e do mundo, antes pelo contrário, está a serviço de uma plutocracia branca e fascista, a mais bélica e assassina da história da humanidade.

uma alteridade, seja lá qual for, negra, feminina, de classe, só tem saída se sua questão individual, político-alteritária, for de todos, de todas as outras alteridades, como comum destino comum.

de qualquer, seu texto é seu texto, instigante, aberto a novos atos nascentes.

beijos
luis

Luizinho disse...

Ainda bem que pertenço a classe das baratas