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domingo, 24 de outubro de 2010

Troca de pele

Como numa ecdise
a pele nova nasce após a necrose.
E nessa incessante troca
do nosso epitélio ávido
por nascer todos os dias
ressurgimos
parindo-nos a nós mesmos
e é por isso que às vezes
entramos naquele estado de transe típicos dos partos naturais.
É essa a ressurreição
em que acredito:
a cotidiana ressurreição
de nosso epitélio.
Camadas e camadas de pele perdemos todos os dias
e vamos espalhando nosso DNA por aí
como pólen dispersado no vento
que germinaria se fôssemos esponjas.

Um túmulo para cada célula morta
e o mundo não caberia em si.

Ofídeos, somos:
a cada dia exibimos uma nova roupagem
e sobre a pele a roupa que é casca:
segunda pele.

Nos mendigos a casca cola-se ao corpo:
a roupa vai se moldando ao corpo
e assim eles fingem
que têm sempre a mesma pele:
tecido sobrecutâneo
que, roto e sujo,
causa asco à madame
que paga pelas suas roupas como se estas fossem  costuradas a ouro
e mesmo assim se vestem mal,
com o mau gosto típico das madames
que se acham chiques
e se julgam auto-imunes ao que julgam sujo
(como se não defecassem)
e se acabam em chiliques
quando se deparam com o que é pútrido.

Mas não vou ficar aqui falando o que é óbvio
ao que já foi dito por inúmeras vias
sacrílegas ou oficiais.

Chega de gastar o verbo
com poemas marginais:

se a vida de cada um de nós é um romance a ser lido por algum suposto leitor
a minha certamente é má literatura
e atrairá pseudo-intelectuais
e será desprezada pelos críticos autênticos
feito aquele pão intragável e duro de anteontem
ao lado de uma fatia fresca de bolo de chocolate com calda de brigadeiro escorrendo apetitosamente fazendo brotar a saliva em feixes dentro de nossa boca ávida.

Mas a vida
é mesmo insossa.
Ou pior:
carne de pescoço.
Ou ainda
aquele calhamaço
abandonado pela metade até pelo leitor mais persistente.
Ou ainda
ir acampar e esquecer o repelente.
Ou ainda
um poema com rimas anódinas.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Vísceras roídas

vontade de rasgar todos os meus livros
e sangrar bichos vivos
para fazer de suas tripas colares podres
e enfeitar-me com as vísceras do bode
para preparar-me para a última foda
e lançar moda
com esse ritual satânico
recheado com sexo tântrico
para louvar um deus adormecido
(talvez Baco)
Por que ainda não inventaram
o deus da cevada?
Já inventaram,
contudo,
o deus  das mal-amadas...
Mal-amadas pelos desalmados
porcos de hospícios
afundados nos mais desprezíveis vícios
e que vendem ósculos nos botecos
bonecos esculpidos em giz -
da cicatriz da flor arrancada jorra um cuspe íntimo e calcáreo
escorrendo pela superfície marmórea
dos tédios aéreos.

domingo, 3 de outubro de 2010

O medo mórbido

eu vivo na Idade Média
quando o riso era proibido
e "eles" queimavam as bruxas.
então finjo o tempo todo
para mim e para os outros
que eu não sou uma bruxa.

e tomo muito cuidado
para nenhum riso escapar pela minha boca
nem nenhum feitiço irradiar de mim.

Então vivo sob o efeito do medo
que escorre feito um melado
por entre as paredes das artérias
(o medo, esse estranho modo
de modelar a fôrma)
e sob efeito do medo
todos não passam de cadáveres
e o corpo que carregamos é um túmulo de si mesmo
moendo a própria moenda
mofando toda a fazenda
que não dá morangos na colheita

olheiras violetas são minha maquiagem:
ainda bem que está na moda ser vampiro!