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terça-feira, 1 de julho de 2008

Ambíguo Ernesto

Ele tinha dois nomes, duas casas, duas namoradas: uma morava na mesma cidade que ele, a outra vivia longe e eles se viam pouco, comunicavam-se mais por cartas. Ele teve duas mães: uma que o pariu e outra que o criou. Tinha dois carros: um para ir trabalhar e outro para os finais de semana: tudo em sua vida era duplo, inclusive seu queixo. Talvez não fosse à toa que tivesse duas narinas. Na prova que fez para conseguir o emprego, passou em segundo lugar: eram duas vagas. Morava num apartamento de dois quartos no segundo andar do Bloco II do prédio D. Pedro II. Teve cálculo renal nos dois rins. Geralmente no almoço devorava uma dupla caipira: angu e torresmo. Morreu duas vezes: teve parada respiratória e o médico o ressuscitou, mas em vão: ele não resistiu. Pensaram em comprar dois caixões para o seu funeral, mas desistiram: ele tinha duas contas em dois bancos distintos, mas deixara dois filhos para serem sustentados.

2 comentários:

J.M. de Castro disse...

E não acabamos por ter, todos, o seu duplo? Nem tão explícito como os espelhamentos de Ernesto, mas umas distorções(será que todo o duplo que se faz no espelho é mesmo semelhante?) que se fazem mais ocultas e íntimas. Duplos que não cessam jamais de habitar no presente, no agora - agora mesmo quando escrevo o comentário ou no agora em que o Ernesto ganhou a dupla vida.Dois caminhos, duas escolhas que a alma sempre titubeia. Sorte daqueles que conseguem viver duplamente. Nas duas vertentes de si.Ernesto aqui, Veronique em Kieslowski, Mattias Pascal em Pirandello...

Verbo livre disse...

O Espelho é aquilo que, fora de mim, me constitui; não existe forma nem substância que determine a minha existência; apenas o movimento das coisas. Logo, posso ser homem, mulher, um cachorro, uma sombra, nada; me componho na falsidade do mundo! Adoro falar de amor porque me refugio na antinomia das palavras; como num aforismo de Valery: "Pois se o eu é odioso, amar ao próximo como a si mesmo torna-se uma atroz ironia".

Ernesto é primo de Orlando; personagem de Virgínia Wolf.