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sábado, 22 de maio de 2010

Síndrome do lobo

Eu sou uma leitora naïf, não sou uma crítica literária, mas talvez um leitor naïf fosse exatamente o tipo de leitor que Hermann Hesse desejasse para a sua obra. Pois o mundo dos críticos está povoado de ateus, e os ateus não percebem certas sutililezas e, como o próprio Hesse falou, O lobo da estepe é, antes de tudo, um livro espiritual.

Sou tão naïf que me atrevo a falar de Hesse sem sequer ter lido uma biografia sua, nem mesmo na Wikipédia, que também não é uma fonte tão confiável assim. Mas, como dele também já li Sidarta, além dO lobo da estepe, é deduzível que ele tinha lá sua relação com a "mitologia" oriental. E tem um certo budismo - aliás expresso - nO lobo da estepe. (Eu queria conhecer mais o budismo, parece mesmo ser muito interessante!). Mas a mensagem que Hesse passa em Sidarta é que não é a favor de sermos escravos de uma ideologia - religiosa ou não - qualquer.

O que Hesse deixa a entender nO lobo da estepe que tem sua relação com a religiosidade asiática é a fragmentação da identidade, sendo que ele usou, muito antes de Stuart Hall, a literatura para falar o que Hall disse na teoria, em A identidade cultural na pós-modernidade. Aliás, O lobo da estepe é uma ilustração prévia perfeita dessa teoria.

Talvez a literatura, com seus péssimos exemplos, sirva para que não cometamos os mesmos erros de seus personagens, os quais, ao nos depararmos com sua decadência, devêssemos evitar seguir como inspiração, tomando até mesmo o rumo oposto. Pois o que Harry Haller foi, acima de tudo, foi um covarde! O pior é que esses péssimos exemplos são sempre sedutores, belissimamente construídos, com sua aura humana e com toda a poesia entorno. Mas era mais sensato que nos baseássemos no mais comum dos mortais, simples e feliz - se é que existe alguém feliz (se conhecer alguém nessa situação, avise-me, por favor!) - do que nesses seres extravagantes que trazem em si mesmo uma advertência de não os seguirmos como espelho. Espelho, aliás, é o que, como próprio O lobo da estepe deixa claro, precisamos para refletir a nós mesmos. Sempre.

Sem esquecermos que, apesar da covardia de Harry Haller, no final ele estava disposto a recomeçar tudo outra vez e fazer uma história diferente. Possibilidade da qual nunca podemos esquecer, estejamos nós aos cinquenta, trinta ou setenta anos. O livro passa essa mensagem, a de que mesmo que venhamos seguindo caminhos tortuosos, podemos a qualquer momento escolher novos caminhos. Ninguém está condenado pelo seu passado. Como nos diz o jogador de xadrez do Teatro Mágico: "E a pobre figurinha, que parecia ainda há pouco viver sobre a influência de uma estrela má, poderá converter-se no próximo jogo em uma princesa.". Mais palavras do próprio Hermann Hesse, dessa vez não travestido por nenhum personagem: "(...) a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção."

Já disseram que O estrangeiro, do Camus, é "uma espécie um tanto perversa de livro de auto-ajuda". O que talvez também se aplique a O lobo da estepe, com a diferença que, apesar de perversa, é deliciosa. Talvez a literatura seja, toda ela, não a auto-ajuda chinfrim que se vê por aí, mas auto-ajuda em forma de ficção, embora ela não tenha necessariamente que ter caráter pedagógico ou qualquer fim pragmático, podendo ser simples fruição estética.

domingo, 16 de maio de 2010

O novelo embaralhado

Talvez a nossa vida seja um pouco - ou totalmente - como nas narrativas de Mia Couto: a fantasia e a ficção, os sonhos também, se entretecem com a realidade e nessa nuvem espessa originada desse cruzamento, não sabemos mais distinguir o quê é o quê, não há como seccionar o onírico e o improvável daquilo que convencionamos chamar de "realidade". Nossa memória é um tricô de muitas lãs, e não somos argutos o suficiente para separar os fios, somos os eternos obnubilados...

A neblina atrapalha a visão e temos que ter cuidado para que esse sonambulismo não nos impeça de reconhecer o quebra-cabeça do poder, e examinar peça por peça.

Quebra-cabeça que mais parece a Vila Cacimba, lugar em que sempre tem um querendo passar a perna. Só que, fictícia ou não, situa-se em Moçambique, país pobre, e seus miseráveis habitantes - os de Vila Cacimba,  onde se passa o romance Venenos de Deus, remédios do Diabo, do escritor moçambicano Mia Couto - inventam várias histórias, muitas vezes uma negando a anterior, enfim, essa confusão toda eles armam como meio de conseguir dinheiro dos estrangeiros que lá chegam. São os miseráveis 171.

Já no quebra-cabeça do poder, ao qual me referi, são os grandes maquinando como vão passar a perna no povo. É a "chissila", palavra moçambicana que significa maldição!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Carnificina de elite

A tropa está armada, devidamente preparada para a limpeza étnica e social: "Vamos varrer do mundo essa gente negra e pobre!", eles pensam.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O menor

Eu vinha pela rua, sombrinha na mão, manga da blusa e barra da calça molhadas pela chuva que escorria do céu, quando avistei um menor encolhido na calçada. Continuei meu trajeto. A sombrinha atrapalhava um pouco o meu campo de visão e, quando dei por mim, o menor já estava ao meu lado. Ele falou qualquer coisa e depois disse: "Volta!". Eu, que tenho lido sobre a proteção aos meninos de rua, na minha ingenuidade não acreditei à primeira vista que se tratava de um assalto. Pensei que ele poderia estar querendo me proteger de algo sinistro que estivesse ocorrendo na continuidade do meu trajeto. Comecei a voltar e, como se o olhasse interrogando-o (a partir daqui não lembro exatamente a ordem dos acontecimentos), ele disse "me dá celular ou dinheiro". A partir desse momento, voltei outra vez ao meu trajeto original. Havia alguns transeuntes à frente, e o menor era impotente demais para fazer qualquer coisa contra mim. Não lembro se ele me chutou antes ou depois de eu ter dito que estava sem celular - e estava mesmo! -, mas foi um chute fraco, nem doeu. Desvencilhei-me dele sem maiores problemas. Por força das circunstâncias tenho lido sobre os problemas dos menores. Isso não me toca mais tanto assim. Mas, o menino que tentou me assaltar, não o odeio, mas também não o amo, talvez mal sinta pena dele, se sinto, é uma pena consciente, consequência das leituras que tenho feito, mas isso não toca meu coração, que anda adormecido ou cego (talvez meu amigo tenha razão: talvez ele - o meu coração - seja de pedra!). Mas, sinceramente, não desejo que esse menor seja internado no IASES, que, para quem não sabe, é uma espécie da antiga FEBEM, ou seja, o inferno! Tampouco vejo esperança para ele! Se pudesse, talvez até o adotasse, mas mal posso sustentar a mim mesma! Sim, é uma pena consciente: ele era só uma pobre criança!

domingo, 9 de maio de 2010

A realidade da maternidade

Dizem que as mulheres que não querem ser mães são egoístas, pois egoístas são aquelas que fazem vir à tona um ser só para preencher seu próprio vazio, e o tecem como a uma marionete, depois, quando - pinóquio - o boneco descobre que tem vida própria e aparece sua personalidade, ele - o ser - já não lhes interessa mais, é só mais um ser nesse mundo de estranhos uns aos outros!

domingo, 2 de maio de 2010

Cemitério

O fracasso a que você me condenou
eu o vivo a cada dia.
Do alho do meu sangue
é sugada a maisvalia.
Aquela batida de porta na sua cara
você me devolveu

instalando o inferno nas minhas vísceras
e a náusea eu a sinto até o último grau.
Vou descendo ao fundo do poço
de degrau em degrau.
A desgraça é o cotidiano mingau
que sorvo
e a água é turva
e a migalha exausta.
Eu tenho areia nos olhos
e meus poros
estão entupidos de argila
e a cratera é viscosa
mas ninguém vem visitá-la.
Só porque você não sorveu de mim
naquela vida antiga
em que eu tinha sonhos.
Mas estou acordada
em pleno pesadelo pegajoso
e mofado
como convém
aos antiquários.
Ninguém
vem
visitar
esse
cemitério.
Os cadáveres já estão roídos
e só restam
ossos
nessa
terra
árida.

E não há flores sobre o túmulo.

Ninguém as depositou.