NOS BECOS DA WEB...

terça-feira, 27 de julho de 2010

o cogito da colônia

o bico como uma boca córnea
o bico que bica o mesmo alimento que a boca
minhoca é proteína
e dizem que na Itália
os humanos comem pizza de minhoca
os pássaros comem o resto de pão
que a boca humana rejeita
e assim o mesmo alimento
é untado por diferentes salivas
diferentes bocas como superfícies
absorvendo o mesmo alimento
aderindo o mesmo mundo

quando ingerimos o alimento
acrescido da nossa própria ptialina,
isso é uma forma de autofagia:
comemo-nos a nós próprios:
nossas próprias enzimas
nosso autossuco.
somos uma colônia de vermes e bactérias e cromossomos
e por ilusão
nos imaginamos unos
na nossa ignorância ingênua

a nossa mente é uma ficção
o surrealismo de
uma multiplicidade de seres.

nossa imaginação é um poema ao avesso
escrito / cuspido pelas nossas células
revolucionárias.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Por aqui

Só há um único caminho a ser traçado
mas sempre há também os que insistem em percorrer as margens
os trajetos paralelos
como moscas a pousarem
nos restos de alimentos
e nas bostas fétidas
e depois destas nos
alimentos a serem ingeridos
pela
boca humana,
ávida
goela sorvedoura
de sorvetes ferventes em caldas
viscosas.

Sempre haverá os que forçam a passagem
dos caminhos proibidos
condenados
e se precipitam
no abismo
evidente
dos caminhos indicados.

Todas as setas apontam para
UM.
Mas há sempre um andarilho curioso
ávido por novas veredas
do ser.
Grandes ou
pequenas
mas sempre aquela viela escura
entre barracos
e atravessada
pela fossa aberta
ou o deserto
como um grande trajeto
não delineado
todo ele uma estrada
refletindo em cada grão translúcido
o brilho do sol amargo
povoado assim
de milhares micro-espelhos
tagarelos
como farelos
evitados
pela ave faminta
que prefere os
corpos que se putrefazem
ao vento.

Cada micro-espelho
reflete um raio incandescente
formando
inúmeros poros transpirando
enzimas acrobáticas
de se satisfazerem
incontidas
pelo relevo
incauto
das dunas de farelos.

O deserto
como uma imensa
garganta.

O anti-caminho
dos caminhos.

Rasurado
pergaminho.

Como as flores mínimas
de cada pele incandescente.
Imensa pele dourada
descamando
brotoejas
insípidas.

sábado, 10 de julho de 2010

Do diabo

Se eu não dedicasse tanto do meu tempo ao que os advogados chamam de "cultura inútil" e, pejorativamente, de "poesia", talvez eu fosse alguém na vida. Quem sabe, uma advogada? Sérgio Buarque de Holanda já falava, e isso se referindo a tempos ainda anteriores à época dele, que esse é o país dos advogados. Não mudou nada, Buarque!

(claro que o advogado, na carreira jurídica, é o mais "ralé" e o Sérgio Buarque de Holanda estava se referindo a todos os bacharéis em Direito)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sabe qual o nome do fruto do carvalho?

 
R = 

Eu costumava gostar de árvores quando a seiva elaborada corria em minhas veias. Mas agora estou cadavérica e o carvalho é seco e não dá mais sombra, e os líquens que haviam em seu tronco fugiram rastejando como aves selvagens. Onde havia copa agora só há galhos pontiagudos que jamais deram frutos, pois há sementes que já nascem abortadas. Há árvores que não prestam nem para lenha. Nem para virar combustível de uma lareira numa noite fria de inverno. Até os cupins desprezam sua carne amarga!
Ficam só enfeiando a paisagem e servindo de obstáculo.
Suas raízes sanguessugam os minerais e tornam a terra improdutiva.
A aridez já é quase um deserto e o vento não vem mover os grãos de areia. Tudo imóvel como uma morte de algo que jamais tivesse nascido.

domingo, 4 de julho de 2010

Jogo de xadrez



Meus cabelos não enganam tão bem, mas já que a cor de minha pele (a maioria concorda que eu sou branca, embora já tenham me definido como "amarela") é por demais etnocêntrica, talvez simplesmente por isso, por eu ser branca, sou uma criminosa, nesse mundo em que a guerra está declarada e que não por acaso as peças do jogo de xadrez são brancas e pretas (ou pretas e brancas, se é que a ordem de citação também não indica um etnocentrismo de minha parte).

Talvez realmente eu seja culpada por meus genes serem tão eurocêntricos e terem selecionado essa cor, já que meu avô, enquanto estava lúcido, insistia em nossa descendência afro, que pode ser que tenham intencionalmente riscado do mapa. A ascendência indígena pelo menos deixou rastros mais facilmente identificáveis: na casa dos meus avós há uma foto da mãe do meu avô: uma perfeita índia. E minha tia e minha prima e meu irmão têm traços de índios. Mas uma outra prima tem cabelos ainda mais afros que os meus, confirmando o que meu avô sempre afirmou. Claro que essa minha prima pode ter herdado seus cabelos afro do outro polo de sua árvore genealógica, mas acredito no meu avô, que agora já não está mais lúcido, já nem posso perguntar quem era o tal antepassado negro, mas talvez nem ele soubesse, senão teria dito à minha avó, que também não sabe dizer quem foi.

Mas como eu dizia, embora eu seja assim, vira-lata na essência genética, talvez eu seja culpada por ser branca na aparência (fenótipo), com essa cara de "francesinha" que já me acusaram ter. Afinal, segundo os kardecistas, algumas pessoas têm o privilégio de escolher, antes de nascer, como será seu corpo físico. Nesse caso a responsabilidade seria inteiramente minha, escolhendo os genitores mais adequados para tecerem meu conjunto de células.

E, no jogo de xadrez, não foi previsto o meio-termo: o rei branco come a rainha negra, mas desse estupro não nasce ninguém.



E a guerra está declarada e milhões de jogos de xadrez são jogados pelo mundo afora (mundo no qual uma elite branca dita as regras e detém a parte mais significativa do poder econômico, mundo no qual o continente europeu bebeu na  fonte de conhecimentos da África - e não só do Egito que eles nos fazem acreditar que é branco - e depois espalha a mentira de que o mérito é todo seu, ou, quando reconhece que foi influenciada, "se parabeniza por ser tão cosmopolita"), e o quê fazer com o resquício da guerra, digo, os filhos miscigenados gerados dos estupros (considerando, como diz Derrida, que num relacionamento erótico a figura do estupro nunca é totalmente apagada, e que há o que se convenciona chamar de estupro e todos aceitam que assim o é, e há as situações em que tudo é mais sutil)? Como as peças serão reposicionadas num mundo que insiste em somente permanecer entre dois polos? E no qual somos julgados pela nossa cor sem se considerarem nossa árvore geneálogica - que alguns se esforçaram por rasurar, mas cuja rasura não nos diz respeito -?

Se passo a me definir como "negra", vão me acusar de estar visando alguma cota em algum lugar, além de estar negando meu antepassado índio e - tenho que assumi-lo - europeu.

Os cães, na escala do cinza, são mais perspicazes que os humanos para perceberem nuances. Talvez os cães, se projetassem jogos de xadrez, criassem mais de dois exércitos.

Na Índia, os que nascem dos relacionamentos entre duas castas distintas são os impuros, que contaminam tudo o que tocam com sua impureza e portanto ficam seccionados do restante da sociedade, e também são os únicos a quem é permitido comer de tudo, ou seja, não sofrem nenhuma restrição alimentar. O que não é considerado privilégio, mas ignomínia. São tão impuros que nada os degradaria mais, nem mesmo comer carne de vaca.

Talvez eu esteja condenada a viver na mesma marginalidade, na fronteira entre dois polos que se odeiam. Posso me refestelar com o banquete completo, se tiver acesso a ele, mas para isso tenho que sobreviver às balas que são atiradas dos dois lados.

Essa é a situação não só dos mestiços, mas da classe média mesma: amortecedora de impactos, papel que ela cumpre muito bem, ao enganar os pobres se fazendo de rica e satisfazer aos ricos trabalhando para eles como os pobres que realmente são.

Talvez por isso nos odeiem com razão, e nos declarem guerra!

Ficamos na corda bamba e damos um nó na corda, ao invés de nos decidirmos por suas extremidades.

Problema que provavelmente não durará muito: a classe média está cada vez mais desfalcada. A questão é que ela não perde a pose. Continua fazendo seu papel de fachada. A fachada está toda esburacada, mas ela tampa os buracos com pasta de dente, pinta de dourado e fala que é ouro. Alguns acreditam piamente que é ouro. Outros odeiam nossa hipocrisia dourada!